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04/06/2025

Reconhecimento facial no Brasil: riscos jurídicos, ausência de regulamentação e ameaça aos direitos fundamentais

O avanço das tecnologias de vigilância tem transformado profundamente a forma como o Estado e empresas privadas interagem com os cidadãos no espaço público. Entre essas tecnologias, destaca-se o reconhecimento facial — ferramenta poderosa de identificação biométrica que opera por meio da captação, análise e cruzamento de imagens do rosto humano com bases de dados. Embora muitas vezes justificada como instrumento de segurança, sua aplicação no Brasil tem levantado sérias preocupações, especialmente no que se refere à proteção de dados pessoais, privacidade e respeito aos direitos fundamentais.

De acordo com levantamento realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), em parceria com a Defensoria Pública da União (DPU), mais de 83 milhões de brasileiros já estão sendo monitorados por sistemas de reconhecimento facial, o que corresponde a 40% da população nacional. Esse crescimento alarmante — 42% em menos de um ano — tem ocorrido sem uma legislação específica que discipline a prática, sem diretrizes técnicas públicas e sem garantias mínimas de transparência ou controle social.

A primeira grande preocupação é a base legal para o tratamento de dados biométricos. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018 – LGPD) classifica a biometria facial como dado pessoal sensível, exigindo requisitos mais rigorosos para seu tratamento. Para ser lícito, o uso de tais dados deve atender a pelo menos uma das bases legais do art. 11 da LGPD, como o consentimento do titular ou o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador. No entanto, na prática, as imagens faciais vêm sendo captadas sem qualquer aviso prévio, sem consentimento explícito e sem garantias de que os dados não estão sendo armazenados ou compartilhados de maneira indevida.

A coleta, muitas vezes, ocorre em locais públicos — como estações de metrô, rodoviárias, escolas, eventos e praças —, por meio de câmeras que operam de maneira invisível, sem placas informativas, sem políticas de privacidade acessíveis e, principalmente, sem a devida prestação de contas aos titulares dos dados. Isso configura uma clara violação aos princípios da finalidade, da necessidade, da transparência e da responsabilização previstos na LGPD.

Outro ponto crítico é a ausência de governança pública e normatização setorial específica. Atualmente, não há no Brasil uma norma que regule o uso de reconhecimento facial por órgãos públicos ou entidades privadas. Em muitos estados, o gerenciamento dos sistemas está a cargo das Secretarias de Segurança Pública, sem supervisão da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e, em 22% dos casos, com envolvimento direto de empresas privadas, o que amplia o risco de uso secundário ou indevido das informações coletadas.

Além disso, estudos internacionais têm demonstrado que os sistemas de reconhecimento facial apresentam margens significativas de erro, especialmente no que se refere à identificação de pessoas negras, indígenas e asiáticas. Isso não apenas amplia a possibilidade de abordagens policiais injustas ou prisões equivocadas, como também reforça estigmas sociais e viola o princípio constitucional da igualdade. A ideia de neutralidade algorítmica é uma falácia: tecnologias treinadas com base em dados enviesados tendem a reproduzir e amplificar as discriminações existentes.

Do ponto de vista constitucional, o uso irrestrito do reconhecimento facial ameaça diretamente direitos como a privacidade (art. 5º, X), a liberdade de locomoção (art. 5º, XV), a liberdade de expressão (art. 5º, IV) e a presunção de inocência (art. 5º, LVII). O ambiente de vigilância permanente pode inibir manifestações, comprometer o exercício da cidadania e gerar autocensura — efeitos incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

A falta de auditorias independentes, relatórios de impacto à proteção de dados, políticas claras de retenção e descarte das imagens e canais efetivos para o exercício dos direitos dos titulares agrava ainda mais o cenário. Na prática, os cidadãos não sabem que estão sendo monitorados, não têm acesso às informações sobre os dados coletados, nem sabem como — ou com quem — exercer seus direitos.

Nesse contexto, é urgente que o uso do reconhecimento facial seja objeto de debate público qualificado, regulamentação específica e controle efetivo por parte da ANPD.

A adoção de tecnologias inovadoras não pode ser dissociada da ética, da legalidade e da proteção à dignidade humana. A segurança pública é um valor importante, mas não pode ser alcançada às custas da violação dos direitos fundamentais. Nenhum sistema de vigilância — por mais eficiente que pareça — pode justificar a perda da liberdade de um inocente.

Portanto, o reconhecimento facial precisa deixar de ser um instrumento de vigilância opaca e se tornar uma tecnologia regulada, auditável e sujeita ao controle social e judicial. Sem isso, estaremos normalizando a exceção como regra, e colocando em risco pilares centrais da democracia.

 

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